"Podemos muito bem perguntar-nos: o que seria do homem sem os animais? Mas não o contrário: o que seria dos animais sem o homem?"Hebbel , Christian





quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Os Potenciais Perigosos


Artigo de Opinião – Os Potenciais Perigosos
Mónica Roriz
3 de Setembro - 2012
Mónica Roriz, médica veterinária especialista em comportamento animal e membro do Conselho Editorial da Veterinária Atual, analisa a atual polémica relacionada com os cães de raças perigosas.


Neste clima de semi-inquisição aos cães de raças ditas potencialmente perigosas, fui várias vezes abordada para dar a minha opinião sobre o tema. Existem sempre, como na maior parte dos assuntos polémicos, quem defenda o oito e quem defenda o oitenta. Neste caso específico, temos os que defendem que os cães das raças reconhecidas como potencialmente perigosas (em território luso) devam pura e simplesmente desaparecer do mapa, e os outros que defendem que perigosos não são os cães, mas sim sempre e exclusivamente os donos. 

Para tentar perceber um pouco melhor as coisas decidi recorrer a analogias. Lembrei-me de duas. Para quem defende que os cães são seres irracionais, pré-programados desde o nascimento, proponho compara-los a veículos. Para quem acredite (insiro-me nesse grupo e tenho a certeza que a maioria dos leitores também o farão) que os cães são animais sociais, com temperamentos individuais, sentimentos, e com histórias de vida irei compara-los a pessoas. Não sou uma grande entendida em carros, mas posso imaginar que um carro desportivo consiga atingir velocidades extremas e possa, pelas suas características, ser “potencialmente mais perigoso” que um carro utilitário. Também é fácil imaginar, e cito um amigo meu, que ‘ser atropelada por uma bicicleta não terá as mesmas consequências do que o ser por um camião’.

Mas nem sempre os acidentes rodoviários mortais ocorrem com carros desportivos, nem todos os condutores de carros desportivos conduzem de forma perigosa, nem todas as mortes por atropelamento são feitas por camiões, nem todos os condutores de carros utilitários conduzem cautelosamente. Como tal, seria descabido promulgar uma lei que proibisse a produção de carros desportivos ou a circulação de camiões nas estradas. Até porque os acidentes não ocorrem sempre por defeito de fabrico dos ditos veículos, mas podem ocorrer por descuido do condutor, por condução inadequada e/ou até possivelmente por uma série de condições específicas, alheias ao condutor e ao veículo que poderão ser fatais. Em qualquer dos casos, um pré-requisito obrigatório é que o condutor, independentemente do carro que venha a conduzir, tenha formação adequada, aulas de condução e passe a carta para poder fazê-lo.

Se tentar imaginar e descrever um potencial criminoso, talvez a primeira imagem que me venha à cabeça seja um retrato semelhante à dos “irmãos metralha”: grande, abrutalhado e com ar de poucos amigos. Parece-me, no entanto, completamente absurdo condenar, até porque não existe o delito de “má figura”, qualquer pessoa com características físicas que irão de acordo com o meu imaginário de “mau da fita” ou condenar familiares ou sósias de criminosos porque afinal, quem sabe, talvez a aparência esteja intimamente ligada à existência do gene “potencialmente perigoso”.

A genética explica apenas cerca de 20% do temperamento dos cães, o restante será feito pelo meio ambiente (rico ou não), pelas experiências precoces (positivas ou não), pela educação dada pelos donos, pela oportunidade que os cães vão ter em se socializar corretamente tanto intra e interespecificamente. Qualquer cão com mais de 15 kg com falhas no período de socialização ou que seja futuramente inserido num meio inapropriado, com falhas graves de comunicação entre ele e o(s) seu(s) dono(s), poderá ser “potencialmente perigoso”, e isso independentemente da raça ou dos cruzamentos.

Para evitar a “produção” de cães com mais apetência a desenvolver patologias comportamentais, ou simplesmente cães mais frágeis e menos adaptados, deveríamos proporcionar-lhes, desde cachorros, o máximo de estímulos positivos com humanos de todas as faixas etárias. Deveríamos proibir que sejam separados fisicamente da mãe (ou de outros adultos caninos educadores) e dos irmãos antes das oito semanas de vida. Deveríamos exigir que eles possam viver em meios adequados e adaptados às necessidades básicas da espécie, usando e abusando das escolas de cachorros e de obediência básica (com métodos de reforços positivos). Outro ponto importante seria nós, como médicos veterinários, moderarmos o discurso de “redoma de vidro” e permitir que os cachorros tenham contacto com outros seres quanto antes, e isso antes do protocolo vacinal estar em dia (pois os quatro meses de vida necessários para que este ocorra coincide com o final do período de socialização). Deveríamos preocuparmo-nos em dar formação adequada aos donos sendo este, talvez, um dos itens primordiais que tenha de ser contemplado na lei, além da responsabilidade civil e criminal.

Quando, no caso trágico da morte da bebé de 18 meses pelo dogue argentino, foi dito na comunicação social que os cães até estavam habituados às crianças em questão estando, na realidade, colocados na varanda sempre que estas apareciam, parece-me que existe uma grande confusão sobre o que é uma boa habituação e socialização. E, se isso acontece com indivíduos informados e de formação “dita superior”, imagino o grau de confusão que poderá existir junto de pessoas com formação dita “inferior”. Acredito que a maioria dos donos desses animais não sejam delinquentes ou jovens inconscientes que apenas querem assustar a vizinhança com cães de grande porte. Alias, custa-me a crer que a proprietária dos dois dogues argentinos, referidos em cima, os tivesse para fins ilegais, tais como lutas de cães, ou para impor respeito às amigas. Existem realmente muitas situações em que os donos, tendo animais pujantes, e não sabendo comunicar corretamente com eles, ou não respeitando as necessidades básicas próprias da espécie, ficam com bombas relógios nas mãos. Não acredito que os donos desses cães sejam, na sua maioria, donos inconscientes, antes apenas pessoas mal informadas. Cabe-nos a nós, ou a quem criar as leis, criar condições para que elas possam ser alertadas e educadas convenientemente por profissionais da área.

A lista das raças potencialmente perigosas varia não só de país para país, como também ao longo do tempo. Os cães apontados como potenciais perigosos de ontem não são os mesmos de hoje e não serão os mesmos de amanhã. Quem não se lembra do medo incutido no que diz respeito aos cães de raça Dobermann? Era certo e sabido: esses cães eram extremamente perigosos pois com a idade o “cérebro crescia” e isso desencadeava uma agressividade de tal forma que eles se transformavam em monstros incontroláveis em que a única solução era o abate. O desaparecimento das raças "ditas perigosas" de hoje só fará com que raças já existentes sejam as futuras raças "ditas perigosas" de amanha. Não existem raças perigosas; existem, isso sim, características morfológicas que podem provocar mais danos em caso de condições ideias para o aparecimento de agressões, sejam estas por falhas de socialização ou falhas de comunicação (pondo de parte qualquer patologia orgânica).

Texto de Mónica Roriz

2 comentários:

  1. Olá Mónica desde já um obrigado pelo texto e por haver alguém que consiga descrever de uma forma tão simples, qual o real problema ou 90% do problema em pessoas sem "carta de condução" poderem "guiar" estes "carros de corrida".Poderia haver um curso Técnico obrigatório para o porte destes animais, sei que iria afectar muita gente, mas ao mesmo tempo obrigava os simples curiosos a terem umas lições de Comportamento animal, Anatomia canina, Umas horas de assistente de veterinária, Treino de obediência, mas como fazemos chegar uma ideia dessas mais elaborada claro, ao Sr Ministro da Agricultura, teria custos? sim! mas pelo menos era uma forma de proteger os animais, porque pelo caminho que estamos a ir os animais estão todos condenados com ou sem donos responsáveis.

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